Desculpa se te chamo de amor...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Onde termina o rio.



Sentada ali, ela pensava: não tenho boas lembranças da infância. Parece que eu já sabia de muita coisa ruim que não deveria saber. A única coisa que eu me lembro que era realmente bela, era essa margem do rio. A mulher que morava conosco estava sempre brava. Sempre fumando. Não sei por quê. Ela ascendia um cigarro atrás do outro. Tocava-os como faíscas, coisa que combinava com seus olhos. Ela nunca me batia, pelo menos, não tão forte quanto o companheiro dela, mas, apesar disso, sua boca feria meus ouvidos. Certa vez ouvi dizer que ela era como o diabo engarrafado, mas eu sinceramente não acho que se beba a maldade. Você pode tentar afogá-la, mas, pela minha experiência até então, ela nada muito bem. Pra escapar disso tudo, sempre venho aqui, na margem do rio, pensando que isso ajudaria na minha asma. Mas eu sabia que não. Talvez morrer fosse a única coisa que ajudasse a minha asma.
Com um tijolo sobre o meu peito, cada inspiração era quase como um milagre, naquela época. Isso tornava um pouco difícil externar o que eu pensava ou sentia. Uma voz lá no fundo, queria que eu falasse dos meus sentimentos, tentando me puxar pra fora de mim mesma. E eu dizia a ela:
- Esqueça os sentimentos, eu posso sentir mais tarde. Me dê um pouco de ar.
Entre a mulher da garrafa, os remédios e a falta de ar da qual eu não conseguia me livrar, havia uma desconexão entre minha boca e meu coração. Alguma coisa dentro de mim estava rompida. Eu viva em pedaços. Talvez ilhas seja uma palavra melhor. Sempre que eu me arrastava pra dentro de mim e olhava em volta, não via um todo. Ou uma parte principal. Via um continente cortado e partido, cada seção flutuando sem rumo em algum canto distante do globo. Uma noite, eu resolvi ouvir a voz que falava dentro de mim, sempre muito baixo para minha respiração muito forçada e alta, e resolvi escrever; escrever sobre o mundo no qual desejava viver. Nunca contei isso à mulher da garrafa. Sempre tive medo. Nunca tinha conseguido compreender por que nunca pude ser boa o suficiente pra ela, pra ele, pra todos eles. Até que um dia, como se fosse um raio de luz, a resposta me veio à cabeça. Simples, muito simples. Eles não me ensinaram nada do que eu faço, do que eu sou. Nada. Desde sentimentos, até valores morais. Não poderiam ter me ensinado nada disso, por que não conhecem, por que não sabem nada disso tudo. Não poderiam amar, serem justos, terem valores nem para salvar suas próprias vidas. O que eu tenho vem de um lugar que nem eles, nem eu conheço. Fui tirada desse pensamento pela voz. Ela me dizia:
- A vida não é fácil. Na maior parte do tempo, é difícil. Raramente faz algum sentido e nunca vem com um belo laço em volta. Parece que, quanto mais você envelhece, mais ela tenta derrubá-lo, derrotá-lo, deixá-lo sangrando...As pessoas vêm até esse rio por vários motivos. Alguns estão se escondendo, outros fugindo,tentando esquecer...Qualquer coisa pra aliviar a dor que nós sentimos e todos nós chegamos aqui sedentos. Portanto, se um dia você se machucar e não sentir nada além de dor; se um dia você mergulhar no poço e ele estiver vazio, com nada além de pó, então deve voltar pra cá...mergulhar e beber profundamente.
E eu o fiz.

10 comentários:

  1. Sim, a vida é tão dificil.. mas não devemos nunca deixar morrer os sentimentos, eles tem que permanecer em nós!

    obrigada pelo carinho amada, você é tão querida, adoro-te, besitos.

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  2. A vida é um presente, flor, ela é sim, mas nem sempre corresponde às nossas idealizações...e é aí que muita gente se desilude.

    Uma pena, né?

    Beijos, ótima quarta!

    ℓυηα

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  3. Isabelle,

    Texto bem construído, fluído e sensível.
    A vida para muitos é isso. Primeiro temos que nos salvar, depois nos constituir a partir de algo de fora, que os que nós cercam simplesmente não tem para oferecer, daí aprendemos o segredo do salvar-se e
    seguimos, fazendo o que nos faz bem e bem feito!(Anna Amorim)

    Beijos,

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  4. Amei o texto. Essa frase então, é perfeita: "A vida não é fácil. Na maior parte do tempo, é difícil. Raramente faz algum sentido e nunca vem com um belo laço em volta. "

    Beijo

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  5. De fato eu gostei mto da forma como escreveste, mostrou toda a sua sensibilidade na dura realidade de uma infancia
    Beijos e otimo fim de semana :D

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  6. Sim menina a vida é difícil, as vezes não faz nenhum sentido e vem sem laço de fita. A vida é uma folha em branco. Seca, límpida e com beiradas cortantes como uma faca. Cabe a nós com todos os sentimentos que temos preencher a essa folha com nossos melhores versos.

    Amei seu texto

    Abraços do menino em fragmentos.

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  7. "...Dai-me de beber, que tenho uma sede sem fim
    Olhe nos meus olhos, sou o homem-tocha
    Me tira essa vergonha, me liberta dessa culpa
    Me arranca esse ódio, me livra desse medo..."

    Eu preciso dessa água, preciso de um renovo pra alma, preciso de um pouco mais das cores (não o preto e o branco)


    vamos caminhando juntos

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  8. Que testo lindo... Fico pensando se é uam história inventada ou vivida. De qualquer modo, é linda e triste e tem uma moral triste também. Achei muito importante a compreensão da personagem sobre as pessoas que a cercam. Saber que as pessoas são o que podem ser às vezes ajuda a compreender a própria dor.

    Lindo lindo... Parabéns!

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  9. Hummm, você heim? Sempre surpreendendo.

    Maravilha.

    bj

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  10. Nada é fácil, mto menos a vida, sempre encontraremos dificuldades. Por isso nunca podemos perder o rumo do rio de vista. Mergulhar de peito aberto e recomeçar, é o que se tem a fazer.
    Adorei o texto, ta lindo aqui !
    bjs flor.

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